Em setembro de 2022, Shanna Garcia, herdeira do bicheiro Waldomiro Paes Garcia, o Maninho, esteve no QG de Bernardo Bello, seu ex-cunhado e maior desafeto, em Vila Isabel, na Zona Norte do Rio. Ao chegar ao local, acompanhada por oito seguranças, ela discutiu com um comparsa de Bello, o miliciano Marco Antônio Figueiredo Martins, o Marquinho Catiri, e deu um soco no rosto dele.
Segundo uma testemunha, a discussão começou quando Shanna encarou Catiri e disse que “não era para ele se meter ali”. Este foi só um dos muitos embates de uma guerra que durou anos. A partir dali, a filha de Maninho teve papel crucial na derrocada do ex-cunhado e nas disputas dos anos seguintes pelo estabelecimento de uma “nova cúpula” para controlar os jogos de azar no Rio.
Acompanhada da mãe, Sabrina Garcia, viúva de Maninho, a herdeira marcou reuniões cercadas de sigilo com Rogério Andrade, sobrinho do capo Castor de Andrade, e Adilson Oliveira Coutinho Filho, o Adilsinho, herdeiro de uma família de bicheiros da Baixada Fluminense, para derrubar Bello. A articulação nos bastidores era motivada pela insatisfação com a falta de repasses dos lucros da contravenção, já que, após o assassinato de Maninho, em 2004, foi Bello quem venceu a disputa familiar pela sucessão e, por uma década, deu as cartas na região.
Por se considerarem herdeiras de Maninho e enxergarem o ex-integrante da família como um usurpador do trono, Shanna e Sabrina deram aval para Rogério e Adilsinho tirar as áreas das mãos de Bello. Em troca, prometeram não interferir na gestão: queriam só a regularização de pagamentos mensais a elas.
A articulação nos bastidores feita por Shanna e sua mãe é somente um dos capítulos da guerra pelo monopólio da jogatina em 32 bairros da região mais lucrativa do estado, que inclui a Zona Sul carioca, em meio aos cartões postais conhecidos no mundo inteiro. No primeiro capítulo da série sobre o novo mapa do jogo, o EXTRA reconstituiu — com base na análise de mais de 10 mil páginas de inquéritos e em entrevistas com investigadores, advogados e personagens envolvidos no conflito — em detalhes os bastidores da disputa, que durou quase dois anos. A guerra deixou um rastro de pelo menos sete assassinatos e culminou na ascensão de uma “nova cúpula” e nas mudanças mais profundas dos últimos 50 anos na geopolítica da contravenção do Rio.
Enquanto Shanna procurava Rogério e Adilsinho para derrubar Bello, os dois já tramavam um plano para crescer na hierarquia da contravenção: eles articulavam a criação de uma “nova cúpula”, formada por um grupo restrito de herdeiros do jogo do bicho. A intenção foi exposta numa conversa de Adilsinho com um parente, interceptada pela PF em 2022.
“O ‘verde e branca’ falou comigo de fazer uma nova organização. Só que eu não consigo falar com ele. Eu também quero, eu também quero poder”. disse. “Verde e branca”, segundo os investigadores, seria uma referência a Rogério, patrono da Mocidade Independente de Padre Miguel, que tem as cores em sua bandeira
Enquanto Shanna procurava Rogério e Adilsinho para derrubar Bello, os dois já tramavam um plano para crescer na hierarquia da contravenção: eles articulavam a criação de uma “nova cúpula”, formada por um grupo restrito de herdeiros do jogo do bicho. A intenção foi exposta numa conversa de Adilsinho com um parente, interceptada pela PF em 2022.
‘Já deu! É outra geração agora’
O objetivo de Rogério e Adilsinho era superar a “velha cúpula”, criada na década de 1970 para apaziguar conflitos entre bicheiros e dividir territórios. Adilsinho afirmou: “Já deu, já passou! É outra geração agora! Não tem santo... É tudo malandro!”. Os dois queriam expandir seus domínios além das fronteiras estabelecidas pelos antigos chefões.
Rogério havia vencido a guerra pelo controle do espólio criminoso da família Andrade, estabilizando seu domínio em Bangu, Padre Miguel e Realengo após a execução de Fernando Iggnácio, em 2020. Ele também anexou territórios importantes, como Barra da Tijuca e Jacarepaguá. Por outro lado, Adilsinho, chefe de uma máfia que monopoliza a venda de cigarros ilegais, desejava se tornar um capo da contravenção.
Dois meses após o encontro com Shanna no QG de Bernardo Bello, Marquinho Catiri foi executado em um ataque na Favela do Guarda. O segurança de Bello foi atacado por cerca de dez homens enquanto saía de uma academia, e Alexsandro José da Silva, o Sandrinho, que fazia parte da escolta de Catiri, também foi morto. A investigação revelou um plano metódico: o imóvel usado para o ataque foi alugado para monitorar a rotina da vítima, com uma câmera escondida em um vaso de planta. Na véspera do homicídio, dois assassinos, disfarçados de parentes enlutados, levantaram um drone para garantir que Catiri não tinha seguranças.
Após o crime, George Garcia de Souza Alcovias, responsável por alugar o imóvel e se infiltrar na região, foi enviado para São Paulo para se esconder até seguir para o Paraguai. Em um áudio interceptado, um comparsa prometeu que Alcovias receberia a recompensa pelo crime. Ele foi preso um mês depois, em Francisco Morato, e a polícia acredita que o “patrão” que financiou a operação é Adilsinho.
Aliança na guerra
O homicídio de Catiri culminou na adesão de mais um herdeiro da contravenção à “nova cúpula”. Segundo testemunhas relataram à polícia, após a morte do capo Luiz Pacheco Drumond, o Luizinho, em 2020, sua família decidiu arrendar a área que o bicheiro controlava, na Zona da Leopoldina, para Bernardo Bello. Catiri passou a administrar o território para o chefe. Após o crime, Vinicius Drumond, filho de Luizinho, queria retomar o controle da região — e, diante da recusa de Bello, ele se aliou a Andrade e Adilsinho na guerra contra o inimigo em comum.
Novos ataques e mortes de comparsas de Bello se acumularam nos meses seguintes. Em março de 2023, Michael Gomes de Azevedo, responsável pela manutenção de suas máquinas, foi assassinado a tiros. Na semana da invasão aos pontos, em abril, foi a vez de seu gerente, Fernando Marcos Ferreira Ribeiro, ser alvo de uma emboscada quando levava o dinheiro do advogado do bando. Dias depois, o filho de Luiz Cabral — homem de confiança de Bello que revelou à polícia a discussão entre Shanna e Catiri — foi baleado em atentado que tinha o pai como alvo, no Catumbi.
Em maio, o cabo da PM Daniel Mendonça da Silva, apontado como um dos seguranças do bicheiro, foi executado na frente do pai, na vila onde eles moravam, em Marechal Hermes.
Mín. 19° Máx. 27°